A Grande Aventura

Andava há muito para tomar uma decisão arrojada, um daqueles grandes saltos que acontecem quando já se tem os bicos dos pés na pontinha da prancha e quando o centro de gravidade já não permite retrocessos. Ainda assim, por várias vezes cofiava a sua longa barba, ajeitando os óculos com as duas mãos, com os dedos simetricamente esticados e numa expressão grave, ora olhando para o monitor, ora verificando se a cinza que acabara de cair do seu quadragésimo cigarro não lhe fizera mais um pequeno orifício na camisa. Os segundos a passar no relógio de xadrez no canto do écran e ele a cogitar nas consequências do seu salto. – E porque não, porra? – pensou ele com a adrenalina a subir, nada que um providencial dedal de Ricard não resolvesse, para as supra-renais deixarem de se armar em parvas. – Afinal já não sou um garoto, não é verdade? – Na dúvida, olhou uma última vez o espelho, mas a decisão estava tomada. Dito e feito. De bicos de pés, desta feita não ainda na prancha, mas numa cadeira de quarto, puxou pelas suas malas de viagem de cima do guarda-fatos, daquelas que já levaram alguns valentes trambolhões e já sentiram a humidade tropical africana, e abrindo-as sobre a cama, iniciou o ritual da alimentação das suas enormes bocas com o mínimo indispensável para um período de longa ausência. – O que é que eu preciso, afinal? Levo o meu portátil com a minha base de dados, levo o meu cérebro carregado de recordações... Pronto, deixa-te disso, já estás com o enevoado nos olhos, parece que estás por detrás de um aquário... Levo umas camisas, roupa interior, lá não faz frio, um guarda-chuva, talvez? – A noite já ia longa, mas não havia razões para ansiedades. Ela afinal tinha sido sempre a sua mais fiel companheira, com o seu silêncio cúmplice, facultando-lhe sempre no monitor um tabuleiro de xadrez mais luminoso em contraste com a penumbra da sua cabine de navegação.
Agora, tomada a decisão, restava-lhe despedir-se dos seus amigos. Aqui iniciou a difícil tarefa de seleccionar os eleitos. Mas afinal são tantos, meu Deus! Foi na hora da despedida, como diria a canção, que se apercebeu que nada tem mais encanto do que saber-se amado por tanta gente. Todos os epítetos como “garoto grande, mas grande amigo”, “cromo mais difícil da colecção, mas grande amigo” “gajo que amua de vez em quanto, mas grande amigo”, “ingénuo às vezes, mas grande amigo”, “sabe mais do que mostra, mas grande amigo”, são ditos com um denominador comum. É obra!
Guardou para último uma criança a quem ele ofereceu o seu primeiro tabuleiro, os seus primeiros livros de aberturas, o seu primeiro relógio, o seu primeiro troféu. Veio jantar à sua casa, à mesma onde celebrou os seus últimos aniversários, as suas últimas consoadas, as suas últimas passagens de ano. Naquela casa, egoisticamente, ficou-se a desejar mais aniversários, mais consoadas, mais passagens de ano com ele, sem pensar que a sua felicidade vale mais do que que a sua companhia quando não se pode ter as duas. Conseguindo aguentar um serão inteiro numa resistência heróica à comoção, para que nunca se confundisse com as lamechices e lágrimas sáurias da moda, foram-se deglutindo memórias e momentos sem demorar muito no palato, sem demorar muito na consciência. E foi assim que ninguém disse “adeus”, mas “até sempre!” Noutra casa, esta bem maior, a do Xadrez Nacional, vai-se sentir decerto a falta daquela tosse repentina que quebra o fio às melhores combinações, vai-se sentir a falta daquele humor contagiante em jeito de praxe estudantil-militar, vai-se sentir a falta das suas teorias da conspiração relativamente ao dirigismo desportivo, vai-se sentir muito, muito, a sua falta!
No dia seguinte iniciava então uma das suas maiores aventuras. Perdido entre os ding-dongs e avisos sonoros, perdido nos monitores que em vez de d4 e Cf3 tinham LH, TP, ou AZ seguidos de um emaranhado de números e de horas, perdido entre centenas de pessoas divididas entre as doses certas de Lexotan ou de gin-tónicos, perdido no meio das gargalhadas frenéticas de quem disfarça o nervosismo, ele só queria ver-se livre das malas (as mesmas que já tinham estado em África, o que era isso para elas?) e sobretudo procurava um local onde pudesse fumar, cada vez mais difícil de encontrar, até à primeira etapa da sua aventura.
Foi assim que, despedindo-se do seu amigo de sempre (com quem andava sempre às turras), o Presidente e co-fundador do Clube de Xadrez que soube amar mais do que ninguém, mostrou o cartão de embarque ao Agente da PSP, e dirigiu-se para a porta de embarque do voo da Iberia com destino a Madrid. Chegado a Barajas, entrou no voo Madrid-S.Paulo. Após uma noite mal dormida e sobretudo sem poder fumar, atravessando o Atlântico, aterrava em S.Paulo para iniciar a partir daqui uma viagem só admissível na National Geographic ou num qualquer trabalho jornalístico mais arrojado. Embarcava então numa aeronave rumo aos confins do Oeste do Brasil, cidade de Cuiabá, Estado de Mato Grosso. Chegado a esta cidade, deveria esperá-lo um voo de ligação (daqueles a hélice, modelo "Indiana Jones") ao Estado de Rondônia, na fronteira do Estado da Amazónia com a Bolívia. Infelizmente perdeu este voo. Com as suas malas (agora já familiarizadas com a humidade que há muito não experimentavam) viu-se na situação de ter que optar por uma viagem de “ônibus” de Cuiabá até Vilhena, na Rondônia. São 750 quilómetros em terra batida, o que é isso para um verdadeiro aventureiro? Quaisquer 20 horas respirando pó...se não chover! É uma coragem difícil de digerir por quantos gostam tanto de olhar para os seus umbigos, contentes pelas proeminentes barriguinhas produzidas por hepatomegálias inevitáveis em gente de boa vidinha, calma e tranquila, olhando de vez em quando para o Site da FIDE para verem o seu nome “Está aqui! Este sou eu!!!!”.

Todos esperamos que tenhas chegado bem, todos queremos muito que sejas feliz, onde quer que estejas, na Antárctida, no Kilimanjaro, na Amazónia no Burkina Faso ou mesmo em Portugal!

A Internet torna o Mundo mais pequeno e os contactos mais possíveis, mas não há nada como o cheiro incomodativo dos teus cigarros!


Walter Tarira, sê feliz! Merece-lo mais do que ninguém!

E OBRIGADO POR EXISTIRES!

9 Comentários:

Às 30 de abril de 2005 às 23:40 , Blogger José Gomes da Silva disse...

Após horas e horas de ansiedade ( e alguma lamechice, porque não dizê-lo?) vieram-me lágrimas aos olhos ao receber, neste cantinho do msn a voz e a alegria do nosso Walter. Está bem de saúde, rejuvenesceu alguns anos de vida, chegou são e salvo, e está pronto para as curvas. Disse-me estar a ser bem tratado, nada mais do que aquilo que mais desejávamos para ele. Decerto vamos vê-lo em força a jogar Hipopótamos e Rinocerontes na net dos confins da Amazónia. Saravá!

 
Às 1 de maio de 2005 às 23:20 , Anonymous Anónimo disse...

Mas que raio de ideia passou pela cabeça do Walter ??? Há pouco mais de um mês eu dizia-lhe no MSN que assim que me reformasse ia para o Brasil ter um final de vida decente, e não é que ele adoptou a ideia.Claro que o grande W me vai lêr e saberá quem escreveu isto. Espero que tenha conseguido tudo o que almejava. Walter, um grande abraço.

 
Às 2 de maio de 2005 às 16:09 , Anonymous Anónimo disse...

Nada de admirar...
Dois Grandes Homens, inteirinhos, naquilo que mais admiro neles: a rijeza de o serem e a "inteireza" do que são!
O Walter, esse belo fauno...partiu para amazónicas distâncias, mas para mim não partiu, porque de mim só deixo partir quem eu quero e Ele cá ficará na minha parca biblioteca de afectos xadrezísticos, mesmo só pela sua extraordinária, saudável e desempoeirada prosa, e uns breves e fugazes instantes de convívio. Nem foi preciso mais.- Agora com a distância, a ternura lembrança por este Homem reacendida, para sempre.
O Major Gomes da Silva, esse "varapau" vicentino quando preciso, mas a tresandar de emoção, afectividade e fidelidade aos amigos e à vida, quanto baste, nada de admirar! Este Homem escreve como raramente se escreve neste paupérrimo e errático xadrez "putuguês". Ele não é dos tais "xatugas" que o vão enterrando! E quem escreve como ele escreve, não pica miolos não, dá-nos sim uma bordoada no lombo da alma, que nos apetece regressar a um silêncio primordial onde as palavras deixam espaço ao seu sussuro, ao ramalhar delas, que é a emoção delas livres-prisioneiras em nós.
Duas Grandes figuras do Xadrez Português!
Dois belos e raros espécimes daquilo a que chamo a minha comunidade xadrezística e tão distantes dos analfaxadrezistas militantes que nos "des-governam".
Walter...E não se pode emigrá-los para aí? Longe de Ti...Claro?

 
Às 3 de maio de 2005 às 04:17 , Anonymous Anónimo disse...

Walter Tarira!!!
Emocionante o carinho de teus amigos portugueses. Maravilhoso o texto deste Major!! Na verdade mesmo, um Marechal das Letras. Mas para que saibas que aqui no Brasil não estás só, que não se preocupem os teus amigos... No Brasil o carinho não é menor, porque és muito mais do que te descrevem . Confirma-se aqui, e através destes gestos carinhosos que, como dizes, a amizade é o bem mais precioso. E este anônimo que te dá o status de Deus, ao descrever-te como “Ele”, com a letra maiúscula que personaliza, por certo não imagina que aqui não és apenas “como Deus”... és o próprio Deus. Que não se assustem tanto os teus amigos de reflexão “xadrezista” – e até gosto do nome - porque aqui, na imensidão amazônica poderás refletir para além das peças..., para além dos peões... poderás sentir o cheiro do verde, a transparência dos rios e o imenso carinho dos Brasileiros que vais encontrando ao longo dos caminhos!!!! E este oceano Atlântico que “pensou” que conseguiria separar-te deste povo que também aqui te ama!! Sejas bem-vindo... e não partas dos nossos corações; o espaço vazio seria insuportável.

 
Às 5 de maio de 2005 às 04:47 , Anonymous Anónimo disse...

Grande,fantático e esmerado texto.
Eu comovi-me tanto com as palavras escritas p'ol meu amigo major,que por mais que eu tentasse,as lágrimas não paravam de correr.
Tenho mesmo muitas saudades do Sr.Walter Tarira(um dos 3 MARRETAS de Alverca)
ASS:Luís Guimarães

 
Às 5 de maio de 2005 às 10:01 , Blogger José Fernandes dos Santos disse...

Conheço o Walter Tarira apenas de alguns torneios, tendo o último sido o Torneio de Lisboa 2005 no Principe Real, mas não podia ficar indiferente ao excelente texto do Major Gomes da Silva.

Desejo as melhores felicidades ao Walter Tarira nessa terra de calor, carnaval e morenas e que se mantenha em contacto com a comunidade xadrezistica portuguesa que não o esquece. Um abraço.

José Fernandes Santos
Jogador (sofrível) do CF Belenenses

http://www.fotografiaexadres.blogspot.pt

 
Às 15 de outubro de 2005 às 18:59 , Blogger Unknown disse...

Lindíssimo texto! Capaz de passar sensações de cheiro, temperatura, cores, etc. Parabéns.
E para os amigos zelosos do aventureiro, fiquem calmos. Vilhena é uma cidade bem agradável e acolhedora. Tem as temperaturas mais amenas do estado de Rondônia. Não é uma capital, mas vivesse bem nesse local.
E Walter, seja bem vindo a queridíssima Rondônia. Aproveite.

 
Às 23 de fevereiro de 2007 às 10:22 , Anonymous Anónimo disse...

That's a great story. Waiting for more. Poodle stationery for outlook express Mercedes used Land rover discovery 1 microsoft project training seminars 2002 gmc sierra 1500 wideside

 
Às 28 de fevereiro de 2007 às 22:16 , Anonymous Anónimo disse...

Excellent, love it! » » »

 

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial